K-Lear


Nota de Intenções


A ideia de levar ao ecrã o rei Lear não é original. No site do IMDB recenseamos pelo menos 16 filmes com esse nome, e isto sem contar com adaptações entre as quais podemos encontrar obras primas como Ran, de Akira Kurosawa.


Peter Brook, Andrew Mc Cullough, Michael Elliott, Jean-Luc Goddard, Konitzev e muitos outros inspiraram-se nesta peça e com actores como Orson Welles, Lord Olivier, Patrick Magee, James Earl Jones…


Nada de novo portanto em fazer uma nova versão. A não ser que será a primeira a ser feita em Portugal – o que já não é pouco – e que esta versão faz uma aproximação entre as noções de velhice, cansaço e loucura a problemas actuais e que dizem respeito a muitos de entre nós: o desemprego e o sentimento transmitido pelos poderes públicos nacionais e europeus de que se pode prescindir facilmente daqueles que fazem a cultura dos nossos tempos.


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A ideia de fazer um filme sobre King Lear, nasceu de conversas entre amigos sobre uma série de temas da actualidade : desde a situação dos intermitentes em França, e em Portugal à paralisia dos Institutos (e do resto) do nosso Ministério da Cultura, passando pela situação de dificuldade que sofre a criação actual em toda a Europa, onde se sente o pessimismo instalar-se com força. Foi assim que nasceu a ideia de fazer um filme sobre King Lear.

A ideia de falar metaforicamente da actualidade a través dos personagens de King Lear estava aí, ao nosso alcance, como que à nossa espera.


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Shakespeare, tal como todos os autores do teatro isabelino, não se caracterizava pelo respeito absoluto pelo texto. Tomava bastantes liberdades, cortando aqui, saltando ali, trocando a ordem das cenas quando isso lhe parecia útil. É um espírito que me agrada muito e que gostaria de reproduzir.


Por isso a versão de King Lear que servirá ao guião do filme não será totalmente respeitosa nem do Folio de 1623, nem dos dois Quartos que o antecedem (1608 e 1619).


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Ran, em japonês, significa chaos. : penso que Kurosawa viu em Lear uma ruptura. No fim de Lear o que advirá é muito mais do que o fim de uma dinastia. É uma nova ordem : um mundo para o qual só conta a palavra escrita e a palavra “dada” conduz à perdição. É o caos, o declínio dos costumes e dos valores da sociedade tal como entendida até então.


Não será certamente por acaso que Alvaro Cunhal, recluso e isolado escolheu este texto para traduzir. Se King Lear pode ser visto como a antecipação de uma nova ordem essa expectativa embora esperançosa é também carregada de incertezas e precedida de um período de caos e desolação. Talvez semelhante ao vivido por Cunhal na penitenciária de Caxias, como sublinha o editor Luís de Sousa Rebelo : “A sintonia entre o tema e as vivências do tradutor é perfeita e revela-se nas páginas da versão portuguesa”.


Hoje também temos a impressão de viver outro fim de época. Os nossos valores e costumes parecem em vias de extinção e, na sobrecarga de (des)informação e na opacidade da transparência em que vivemos, o discurso democrático esvazia-se de conteúdo transformando-se num monstro. Tal como Lear e Glocester fizeram, criámos e alimentámos monstros prontos a nos destruir, a nós e aos nossos valores.


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Sobre a forma : este é um filme que se passa todo dentro da cabeça de um homem. Haverá portanto uma profusão de vozes justapostas a flash backs e a imagens de actualidade e de arquivo, embora, na “realidade”, esse homem nunca saia de sua casa. A utilização da voz-off e a banda sonora serão construídos numa lógica radiofónica. Os ambientes são urbanos e contemporâneos e é o som que nos remete para a peça de Shakespeare.


A escrita do argumento consistirá na adaptação do texto a uma escrita cinematográfica e no desenvolvimento das situações que permitam criar paralelismos com a tragédia isabelina.

AGZ


K-Lear

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