Manuel, o homem-manual. Anatomia duma biografia
a propósito de Manual de irradiação iRádio-acção!
Será possível que uma pièce de teatro tenha como objecto não uma personagem ou um acontecimento, mas um outro género literário: o da biografia? E será possível que nesta representação cénica dum género litérario, a pièce de teatro escolha como figura chave da sua transposição dramatúrgica não a biografia duma personagem, mas a biografia da metamorfose perene que por baixo da pele convencional da subjectividade (à qual nos agarramos como colete salvavida da nossa identidade) constitui a carne do nosso ser humanos enquanto produtos sociais? É possível, se (como acontece em Manuel de Alvaro Garcia de Zúñiga) o postulado de partida é que a natureza contaminada e ‘bastarda’ da biografia (operação problemática e instável de sutura entre vida e escrita, ‘realidade’ e sua representação narrativa, verdade histórica e existencial e reconstrução alheia) não for uma degeneração factual em relação ao seu objectivo (como se houvesse um ideal de transposição absoluta do sujeito em objecto que paira por cima de todas as tentativas concretas de aproximação a esta perfeição, possível em princípio, mas de facto sempre inalcançável), mas a manifestação da sua impossibilidade de princípio : o sujeito não pode ser integralmente e consistemente objecto (de conhecimento e de representação), e todas as tentativas nesse sentido devem falhar redondamente.
Será então mesmo que Deus está morto e o sujeito não existe, como decretou solene e tristemente grande parte da literatura e do pensamento do século passado? Em Manuel, Alvaro Garcia de Zúñiga não nega o falhanço (como tantos autores que continuam a escrever como se nada tivesse acontecido), mas também não se contenta (como tanto estéril maneirismo da pós-vanguarda) com o relatório desta liquidação niquilista e contro-intuitiva. Manuel põe em cena o cadáver da biografia (o seu assumido fracasso, como mise en abîme da crise do sujeito) para reconstruir numa anatomia dramaturgica tão implacável como perturbadora os mecanismos desta morte e o que é que ela tem a ensinar. Porque se a teoria decretou a crise do sujeito (a sua desintegração gnoseológica e ficcional), a realidade é que esta insustentabilidade de princípio sustenta na prática o nosso dia-a-dia de cidadãos, pais, filhos, maridos, mulheres, amigos, sendo a conditio sine qua non da nossa sobrevivência: o que não faz sentido em termos cognitivos e estéticos (a identitade dum ego soberano de si mesmo) é imprescindível para andarmos no mundo a fazer qualquer coisa.
É então a partir desta constatação ‘sanchopanzesca’ que Manuel desenvolve o seu diagnóstico dramatúrgico por meio da mise en abîme caricatural (há um grande teatro cómico nesta peça) do olhar reflexivo-distorcivo-ocultativo que está na base de toda a tentativa de apropriação consciencial e narrativa da subjectividade humana e pela descoberta que todos os paradoxos gerados por este olhar alheio que o sujeito dirige a si mesmo na tentativa de definir a própria identidade (olhar prolongado nos esforços biográficos em relação aos outros) ficam completamente vazios e irrelevantes na dinâmica básica que define o ser no mundo enquanto vivente : a da sobrevivência. Na perspectiva essencial do sujeito para ser tal (ser vivo), a identidade não poderá mais ser vista como um objecto (de conhecimento, de narração), mas unicamente como um ‘corpus’ de instruções (um manual) que vamos aprendendo (e tentando formular) para depois poder executá-las. É um dispositivo de respostas a dar e de operações a executar que se adapta flexivelmente à mudança de contexto natural, histórico e social em que nos movemos. A adaptação é de facto a figura chave do sucesso (biológico e social) : o organismo/o sistema que não se adapta morre. O sujeito não será nada mais do que uma maquina de elaboração de respostas funcionais às solicitações do ambiente numa complexidade historicamente crescente, em que aos estímulos orgânicos se sobrepõem aqueles sociais, numa forma e numa numa medida tão intensas em força da pervasividade tecnológica da actualidade, que as fronteiras entre ambientes, códigos e sistemas acabam por cair, dissolvendo-se numa oscilação indefinida, porosa e desorientante entre orgânico e artificial, que nos tira todas as certezas tradicionais ligadas a definições objectivas do que é físico e natural: será hoje a morte, por exemplo, uma questão de corpo ou de máquina ? (Nessa terra de ninguém entre morte cerebral e morte biológica em que hoje se perdem em debates sem fim médicos e legisladores, onde é que morre o homem ? Será o bip da máquina a última palavra do sujeito?)
Mas se esta flutuação crescente dos perímetros existenciais a que nos submete a tecnologia (tema central desta obra) é um problema da actualidade, a anatomia biográfica de Manuel dá-se o trabalho de mostrar que isso não é nada que não seja inscrito desde o começo no ser ‘híbrido’ do homem, se a sua ‘natureza’ é (como dizia o filósofo) de ser um animal dotado de língua: um orgão vivo dotado dum dispositivo de instruções de que ainda não se conseguiu determinar quanto e, eventualmente, o que nele seja natural (o que na língua é património inato, inscrito nos genes da raça humana) e o que seja pelo contrário puramente artificial (cultural). A língua é nesse sentido a figura matricial da tecnologia (nas suas potencialidades e nos seus riscos), e como a tecnologia a língua é riqueza e ameaça (qual formidável instrumento de hegemonia política é poder dar a instrução social de qual é a língua a falar! Do latim, passando pelo espanhol e o português, e chegando hoje em dia ao inglês, é pequena a lista das línguas imperiais e colonizadoras, braço cultural do poder político, e imensa a lista das línguas submissas, derrotadas, exterminadas). A língua, as línguas, são o vector originário e primário da potência que garante ao homem a sobrevivência e assim também daquela violência que é funcional à luta que a adaptação implica.
Manuel, o manual de instruções que é a identidade dum ser que luta para sobreviver (porque enfim ser vivo é a unica garantia irrefutável que temos de ser alguém), não pode ser ‘identificado’ com nenhuma das respostas dadas aos estímulos encontrados. O que o qualifica não é a solução dada de cada vez mas o facto de fornecê-la. Narrá-lo é então representar a metarmofose permanente que o mantem vivo – em que a continuidade temporal e material garantida pelo corpo se dissolve na percepção interior desta mudança permanente. Será Manuel o mesmo ser de há dez, vinte, trinta anos ? Será Manuel, o velho, o mesmo ser que era o bebé ao colo da mãe? Ou será Manuel a pluralidade não unificável dos muitos seres que se sobrepõem dentro e fora dele, numa coexistência difícil e cansativa, que chega a ser um insuportável ruído de contemporaneidades incompatíveis e eventualmente contraditórias (como acontece no palco, quando a multiplicidade que é Manuel se reúne e choca, numa luta barulhenta para ter o controlo da cena, da interioridade, da história narrada, da acção; quando as muitas vozes que cada um de nós é falam ao mesmo tempo, deixando-nos sem palavra)? A peça não dá resposta. A essa pergunta, na vida, não há efectivamente resposta. A última porta que se abre é aquela que se fecha: é o mistério do silêncio em que todas as vozes finalmente desaparecem e todas as línguas se calam, o mistério do silêncio perante o qual só nos é dado acompanhar quem se vai embora com um olhar de piedade e o desejo que seja então esta a altura em que o homem-manual, deixando de ser a pluralidade de instruções a dar/receber/executar, chegue à paz de ser um.
Manuel, rest in peace!