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Revisão das 17h23min de 22 de Abril de 2013
Um projecto do São Luiz Teatro Municipal
comissariado por Alvaro García de Zúñiga & Teresa Albuquerque
Sessão 34 – Terça 30 de Abril 2013 – Leitura dos capítulos 11, 12 e 13 da Segunda Parte do Ingenioso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
Toda a descrição da carreta de actores com a qual cruza-se DQ corresponde a realidade; ao ponto que perguntámo-nos se Cervantes não terá tentado experimentar neste encontro algo que poderíamos chamar de literatura documental.
Existiu realmente o autor de comedias Andrés de Ângulo “El Malo”, a sua companhia era uma das mais renomeadas da época. Existiu também o auto sacramental que eles vêm de representar, Las Cortes de la Muerte, e até mais de um. Miguel de Carvajal e Luis Hurtado de Toledo escreveram peças com esse título, mas a traves das indicações dos figurinos Menéndez Pelayo – um dos maiores cervantistas de sempre – afirma que Cervantes reproduz com grande fidelidade o auto do mesmo nome de Lope; ao tempo que Clemencín – o primer grande comentador de Cervantes – assinala que também poderia tratar-se de uma das peças do próprio das que não foram publicadas, e porque não, que também poderia levar esse mesmo título.
Outra coisa que nos explicam os cervantistas é que, como nos é dito no texto, oito dias depois do Corpus Christi celebra-se uma festa na qual as companhias que tinham actuado nas procissões nas cidades mais importantes, iam representar os autos sacramentais às povoações mais pequenas. Até a personagem vestida de mamarracho que faz soar os seus guizos e esgrime um pau com bexigas de vacas corresponde a realidade: trata-se de uma figura carnavalesca que personifica a loucura – tão em sintonia com a nossa historia – que precedia os carros durante as procissões, assustando o público com seus saltos e seu pau...
A inclusão de toda esta realidade, e a alusão às Cortes de la Muerte não são casuais. Não podemos esquecer que o auto de Lope de Vega representa a versão barroca das antigas danças da Morte tardo-medievais, nas quais encena-se o encontro do homem com o Diabo, o Tempo, a Loucura e a Morte, que julgam o homem, que só será salvo ao renegar da vida dissoluta. Com isto percebemos que o relato vá muito alem da simples narração das costumes da época e do homenagem saudoso às pessoas e ao mundo do teatro, inserindo-se no percurso predefinido por Cervantes para o desenvolvimento da historia da Segunda parte.
Depois do preludio de Dulcineia encantada, o autor confronta sua personagem à visão duma realidade paradoxal, encenando frente ao louco a imagem da loucura, deixando assomar a imagem da morte como um pressagio, tal vez alertando-nos que esta será a última viagem do nosso cavaleiro.
Mas Cervantes confronta-nos também a nos com o paradoxal. Nesta literatura documental que nos da conta de um grupo de actores disfarçados fora do contexto natural do teatro somos testemunhas de um curioso encontro: o de um louco disfarçado de cavaleiro andante que da de cara com um actor disfarçado de louco. Rocinante, assustado, tenta fugir e cai com DQ, e a loucura, “para imitar D. Quixote e Rocinante”, foge com o ruço e cai, num deformado jogo de espelhos dos gestos do cavaleiro. Mais tarde DQ dirá que “nenhuma comparação há que mais ao vivo nos apressente o que somos e o que devemos ser como a comedia e os comediantes”, sem poder dar pelo facto – evidentemente – que o velho tema do grande teatro do mundo acaba de ser-nos exposto do modo mais paradoxal e original que se possa vir a imaginar.
Mas o jogo de espelhos não fica por lá. O desafio e combate com um cavaleiro desconhecido, tema frequente nos livros de cavalaria são sem dúvida um marco mais que apropriado para suceder às referencias à comedia como espelho da vida e à própria representação da aventura precedente. Espelho que tem também o seu mais longínquo paralelo no combate com o biscainho, este confronto com o “Cavaleiro dos Espelhos”, inventado e interpretado pelo próprio Sansão Carrasco como método para por fim às andanças de DQ, alem de no acto, visa confrontar o nosso herói com a sua própria ficção, e assim, uma vez derrotado, faze-lo regressar definitivamente a sua casa.
Espelho deformado da dupla Cavaleiro dos Espelhos – DQ é a que formam Tomé Cecial e Sancho Pança, dentro do qual a utilização do disfarce por parte de Sansão e Cecial é mais um jogo de espelhos. E sem disfarce, no “colóquio escuderil” Sancho nos diz aquilo que vai-lhe no fundo do coração e expressa aquilo que sente pelo seu amo – e que bem exprime o que muitos de entre nos também sentimos – “que no tiene nada de bellaco, antes tiene una alma como un cántaro: no sabe hacer mal a nadie, sino bien a todos, ni tiene malicia alguna; un niño le hará entender que es de noche en la mitad del día, y por esta sencillez le quiero como a las telas de mi corazón, y no me amaño a dejarle, por más disparates que haga”.
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