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No episódio que vamos começar nesta sessão, Cervantes – a pesar das dúvidas explicitadas no capítulo terceiro, relacionadas com a inclusão de novelas curtas dentro do relato volta a utilizar a técnica a qual nos tinha habituado na Primeira parte, mas agora de um modo aperfeiçoado, que estas novelas ou histórias secundárias passam a integrar a trama do relato principal.
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O já anunciado episodio da cova de Montesinos é cuidadosamente preparado por Cervantes. Um primo de Basílio, personagem sem nome, será o guia de Dom Quixote e, no transito tratarão do tema do amor e da pobreza e os seus contrários, que nada pode calhar melhor entre as bodas de Camacho e que vai a acontecer na cova de Montesinos.
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O primo, não só grande leitor, é escritor, ou para dizer melhor compositor de livros para dar à estampa. E imprimiu, justamente, o Ovidio Espanhol e também o Suplemento a Virgílio Polidoro, Que Trata da Invenção das Coisas... A fértil imaginação de Dom Quixote metamorfosear, abrindo o jogo de personificações e referencias fluviais e diversas que em certo modo já preanunciam as aparições de Merlim e da senhora Dulcineia.
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As duas da tarde – e isto terá a sua importância – atado com cem braças de soga pouco menos de 200 metros – e não sem antes encomendar-se à sua senhora Dulcineia, Dom Quixote empreende a descida.
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A alegoria da caverna foi utilizada como espaço mágico e visionário por todos os géneros literários, sem esquecer o teatro. No Quixote, Cervantes nos a faz ver como o lugar de sonho e de desengano referido a toda a literatura de perspectiva épica, mas remete também ao âmbito do processo de conhecimento que refere Platão na República, ligando-o ao da criação literária, que é na mente de Dom Quixote, através do sonho, onde a cova e os seus habitantes ganham realidade. O sonho, desde Homero alias, tem duas caras: a da verdade e a da mentira. Nessa duplicidade Cervantes implica primeiro seus personagens, mas depois também a nos, leitores, já que a partir deste episodio não voltaremos a ler do mesmo modo aquilo que diz respeito aos assuntos da percepção.
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As quatro da tarde Dom Quixote começara a dar conta com exactidão e luxo de detalhes todo o referente a sua descida. Por primeira e última vez em toda a obra é personagem e narrador de uma historia da qual só temos o seu testemunho. Este ser recebido com credulidade por parte do primo e cepticismo por parte de Sancho. Mas tal vez mais importante ainda será a opinião de Cide Hamete, quem no começo do próximo capítulo dará o episodio por apócrifo...
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Montesinos é um personagem pertencente ao ciclo carolíngio, mas que não existe na legenda francesa original. Casado com Rosaflorida, estes eram os senhores do castelo de Rocafrida, que de acordo com a tradição popular as ruínas de dito castelo situavam-se na Mancha, perto da cova que veio a chamar-se “de Montesinos” provavelmente por esta razão. Em algumas baladas Montesinos é o primo de Durandarte, e é nessa qualidade que ele aparece – e em mais de uma ocasião – no Quixote.
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Durandarte, por seu lado, é um herói. O seu nome deriva de Durendal, que era a espada de Rolando, mas que em Espanha transformou-se no nome do cavaleiro enamorado da bela Belerma, a quem tinha prometido enviar o seu coração caso fosse mortalmente ferido em batalha. Quando isto acontece, na batalha de Roncesvalles, é o seu primo, Montesinos, quem corta e leva o coração a Belerma.
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O ciclo carolíngio reune todas as canções de gesta e poemas épicos surgidos nos primórdios da literatura francesa ente os séculos XI e XII, que foram-se espalhando por toda Europa.
  
 
Iremos assistir assim às bodas do rico Camacho, mas o nosso autor não deixa mais uma vez de surpreender transformando o episódio pastoril numa adaptação complexa e inesperada de uma variação – muito provavelmente da sua própria invenção – da história de Píramo e Tisbe. A história dos amores de Quitéria e Basílio, que nos é assim contada, sai do molde tradicional da fábula que, vale a pena relembrar, é o seguido por Shakespeare na tragédia de Romeu e Julieta.
 
 
 
Sancho e o seu mal falar, por sua parte, conduz a uma discussão sobre o tema, durante a qual Dom Quixote é levado a afirmar que “la discreción es gramática del buen lenguaje”. O debate deriva numa reflexão sobre as relações entre natureza e arte, que termina pelo triunfo deste pois permite melhorar a primeira. Esta ideia sublinha-se no desafio dos estudantes, do qual resulta vencedor não o mais forte senão o que domina o uso da espada, arte à qual se somam a discrição e a destreza, temas estes que conhecíamos, já tendo sido tratados dez anos antes na primeira parte do Quixote, e a que talvez Cervantes tenha querido dar relevo justamente ao mesmo tempo que narrativamente nos faz voltar à técnica literária que tinha posto em causa no começo desta segunda parte. 
 
 
 
Também a arte está presente na transformação do prado onde virá a ocorrer o casamento. E não só: é pela indústria da arte que Basílio conseguirá triunfar e modificar o curso natural dos acontecimentos...
 
 
A seguir vemos Sancho como se fosse pintado por Brueghel bebendo vinho e saciando a sua fome ancestral com uma voracidade carnavalesca. O campesino pobre que é tinha-se primeiro inclinado a favor de Basílio na disputa pela bela Quitéria, mas a abundância alimentar da boda leva-o a mudar de opinião e defender o ponto de vista do rico Camacho. E Dom Quixote seguirá justamente o caminho oposto, num jogo de reversibilidade com o qual Cervantes mais uma vez parece querer dar-nos a entender a importância que dá, e que tem nesta história, a mudança de perspectivas e a complexidade da realidade.
 
 
 
O artificio continua através de umas danças faladas alegóricas nas quais Cupido e o Interesse lutam por uma donzela. O significado, desta vez é simples de compreender: Amor já não é o deus ao que Petrarca nos tinha habituado, que triunfa  sobre todos os obstáculos; este foi substituído pelo dinheiro, esse “poderoso cavaleiro” que já na Espanha em crise de finais do século anterior – e estamos a falar do século XVI – tudo submete à sua lei. Bem se tem apercebido Sancho, que sabe tirar a lição do episódio dizendo-nos que só há duas linhagens no mundo: a do ter e a do não ter...
 
 
 
Chegamos assim ao fim da cena que, montada como se de um verdadeiro espectáculo teatral se tratasse, transforma-se em comédia que até tem uma tonalidade paródica que não se pode adivinhar no princípio. O triste Basílio, qual novo Cardênio, não pode senão ter o funesto destino de Grisóstomo, e quando já à beira da morte, por piedade, consegue casar com Quitéria de modo a morrer tendo sido feliz pelo menos nos últimos instantes da sua vida, o rapaz surpreende todos levantando-se, o que leva aos presentes a dizer “Milagre! Milagre!”, e ele a contestar “Milagre, milagre, não, mas indústria, indústria!”. Trata-se, claro, do triunfo de Amor sobre o Interesse...
 
 
 
Agustín Redondo faz notar que os nomes de Quitéria e Basílio se referem a santos que por sua vez se referem ao desenrolar dos acontecimentos, o que já não nos surpreende na complexa trama a que Cervantes nos tem habituado. Mas sim pode surpreender que o nome do rico e “desilustre” Camacho tem uma correspondência que anula a sua virilidade ao Capacho do “Retablo das Maravilhas” que dentro de umas semanas iremos ler.
 
  
 
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Revisão das 00h23min de 29 de Junho de 2013


Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque


Sessão 38 – Terça 2 de Julho de 2013 – Leitura dos capítulos 22 e 23 da Segunda Parte do Ingenioso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."



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Comentario aos capítulos 22 e 23 da Segunda Parte do Ingenioso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


O já anunciado episodio da cova de Montesinos é cuidadosamente preparado por Cervantes. Um primo de Basílio, personagem sem nome, será o guia de Dom Quixote e, no transito tratarão do tema do amor e da pobreza e os seus contrários, que nada pode calhar melhor entre as bodas de Camacho e que vai a acontecer na cova de Montesinos. O primo, não só grande leitor, é escritor, ou para dizer melhor compositor de livros para dar à estampa. E imprimiu, justamente, o Ovidio Espanhol e também o Suplemento a Virgílio Polidoro, Que Trata da Invenção das Coisas... A fértil imaginação de Dom Quixote metamorfosear, abrindo o jogo de personificações e referencias fluviais e diversas que em certo modo já preanunciam as aparições de Merlim e da senhora Dulcineia. As duas da tarde – e isto terá a sua importância – atado com cem braças de soga – pouco menos de 200 metros – e não sem antes encomendar-se à sua senhora Dulcineia, Dom Quixote empreende a descida. A alegoria da caverna foi utilizada como espaço mágico e visionário por todos os géneros literários, sem esquecer o teatro. No Quixote, Cervantes nos a faz ver como o lugar de sonho e de desengano referido a toda a literatura de perspectiva épica, mas remete também ao âmbito do processo de conhecimento que refere Platão na República, ligando-o ao da criação literária, já que é na mente de Dom Quixote, através do sonho, onde a cova e os seus habitantes ganham realidade. O sonho, desde Homero alias, tem duas caras: a da verdade e a da mentira. Nessa duplicidade Cervantes implica primeiro seus personagens, mas depois também a nos, leitores, já que a partir deste episodio não voltaremos a ler do mesmo modo aquilo que diz respeito aos assuntos da percepção. As quatro da tarde Dom Quixote começara a dar conta com exactidão e luxo de detalhes todo o referente a sua descida. Por primeira e última vez em toda a obra é personagem e narrador de uma historia da qual só temos o seu testemunho. Este ser recebido com credulidade por parte do primo e cepticismo por parte de Sancho. Mas tal vez mais importante ainda será a opinião de Cide Hamete, quem no começo do próximo capítulo dará o episodio por apócrifo...

Montesinos é um personagem pertencente ao ciclo carolíngio, mas que não existe na legenda francesa original. Casado com Rosaflorida, estes eram os senhores do castelo de Rocafrida, que de acordo com a tradição popular as ruínas de dito castelo situavam-se na Mancha, perto da cova que veio a chamar-se “de Montesinos” provavelmente por esta razão. Em algumas baladas Montesinos é o primo de Durandarte, e é nessa qualidade que ele aparece – e em mais de uma ocasião – no Quixote. Durandarte, por seu lado, é um herói. O seu nome deriva de Durendal, que era a espada de Rolando, mas que em Espanha transformou-se no nome do cavaleiro enamorado da bela Belerma, a quem tinha prometido enviar o seu coração caso fosse mortalmente ferido em batalha. Quando isto acontece, na batalha de Roncesvalles, é o seu primo, Montesinos, quem corta e leva o coração a Belerma. O ciclo carolíngio reune todas as canções de gesta e poemas épicos surgidos nos primórdios da literatura francesa ente os séculos XI e XII, que foram-se espalhando por toda Europa.


AGZ


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