Um projecto do São Luiz Teatro Municipal
comissariado por Alvaro García de Zúñiga & Teresa Albuquerque
Sessão 34 – Terça 30 de Abril 2013 – Leitura dos capítulos 11, 12 e 13 da Segunda Parte do Ingenioso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
Toda a descrição da carreta de actores com a qual se cruza DQ corresponde à realidade; ao ponto que perguntámo-nos se Cervantes não terá tentado experimentar neste encontro algo que poderíamos designar por literatura documental.
Existiu realmente o autor de comédias Andrés de Ângulo “El Malo”, a sua companhia era uma das de maior renome da época. Existiu também o auto sacramental que eles acabam de representar, Las Cortes de la Muerte, e até mais de um. Miguel de Carvajal e Luis Hurtado de Toledo escreveram peças com esse título, mas, pelas as indicações relativas aos figurinos, Menéndez Pelayo – um dos maiores cervantistas de sempre –, afirma que Cervantes reproduz com grande fidelidade o auto do mesmo nome de Lope; ao mesmo tempo que Clemencín – o primeiro grande comentador de Cervantes – assinala que também se poderia tratar de uma das peças do próprio, das que não foram publicadas, e porque não, que também poderia levar esse mesmo título.
Outra coisa que nos explicam os cervantistas é que, como nos é dito no texto, oito dias depois do Corpus Christi se celebra uma festa na qual as companhias que tinham actuado nas procissões nas cidades mais importantes, iam representar os autos sacramentais às povoações mais pequenas. Até a personagem vestida de mamarracho que faz soar os seus guizos e esgrime um pau com bexigas de vacas corresponde à realidade: trata-se de uma figura carnavalesca que personifica a loucura – tão em sintonia com a nossa história – que precedia os carros durante as procissões, assustando o público com seus saltos e seu pau...
A inclusão de toda esta realidade, e a alusão às Cortes de la Muerte não são casuais. Não podemos esquecer que o auto de Lope de Vega representa a versão barroca das antigas danças da Morte tardo-medievais, nas quais se encena o encontro do homem com o Diabo, o Tempo, a Loucura e a Morte, que julgam o homem, que só será salvo ao renegar a vida dissoluta. Com isto percebemos que o relato vai muito além da simples narração das costumes da época e da homenagem saudosa às pessoas e ao mundo do teatro, inserindo-se no percurso predefinido por Cervantes para o desenvolvimento da história da Segunda parte.
Depois do prelúdio de Dulcineia encantada, o autor confronta a sua personagem à visão de uma realidade paradoxal, encenando frente ao louco a imagem da loucura, deixando assomar a imagem da morte como um presságio, talvez alertando-nos que esta será a última viagem do nosso cavaleiro.
Mas Cervantes confronta-nos também a nós com o paradoxal. Nesta literatura documental que nos dá conta de um grupo de actores disfarçados fora do contexto natural do teatro somos testemunhas de um curioso encontro: o de um louco disfarçado de cavaleiro andante que dá de cara com um actor disfarçado de louco. Rocinante, assustado, tenta fugir e cai com DQ, e a loucura, “para imitar D. Quixote e Rocinante”, foge com o ruço e cai, num deformado jogo de espelhos dos gestos do cavaleiro. Mais tarde DQ dirá que “nenhuma comparação há que mais ao vivo nos apresente o que somos e o que devemos ser como a comédia e os comediantes”, sem poder dar pelo facto – evidentemente – que o velho tema do grande teatro do mundo acaba de nos ser exposto do modo mais paradoxal e original que se possa vir a imaginar.
Mas o jogo de espelhos não fica por aqui. O desafio e combate com um cavaleiro desconhecido, tema frequente nos livros de cavalaria são sem dúvida um marco mais que apropriado para suceder às referências à comedia como espelho da vida e à própria representação da aventura precedente. Espelho que tem também o seu mais longínquo paralelo no combate com o biscaínho, este confronto com o “Cavaleiro dos Espelhos”, inventado e interpretado pelo próprio Sansão Carrasco como método para pôr fim às andanças de DQ, além de no acto, visa confrontar o nosso herói com a sua própria ficção, e assim, uma vez derrotado, fazê-lo regressar definitivamente a sua casa.
Espelho deformado da dupla Cavaleiro dos Espelhos – DQ é a que formam Tomé Cecial e Sancho Pança, dentro do qual a utilização do disfarce por parte de Sansão e Cecial é mais um jogo de espelhos. E sem disfarce, no “colóquio escuderil” Sancho diz-nos aquilo que lhe vai no fundo do coração e expressa aquilo que sente pelo seu amo – e que bem exprime o que muitos de entre nos também sentimos – “que no tiene nada de bellaco, antes tiene una alma como un cántaro: no sabe hacer mal a nadie, sino bien a todos, ni tiene malicia alguna; un niño le hará entender que es de noche en la mitad del día, y por esta sencillez le quiero como a las telas de mi corazón, y no me amaño a dejarle, por más disparates que haga”.
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