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Dizíamos no comentário aos capítulos 41 e 42 que talvez o mais extraordinário dos conselhos que DQ dá a Sancho seja a simplicidade com que Cervantes os expõe, fazendo que estes se encontrem ao alcance imediato do leitor menos preparado ao mesmo tempo que, para um leitor mais atento, estes apareçam como uma série de comentários a meio termo podendo entender-se como alusão aos preceitos que se encontram nos livros de cavalarias da época ou como sendo a sua subversão absoluta, e que esta é outra das novidades e grandezas que Cervantes traz à prosa e à arte narrativa.
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Desde o mesmo parágrafo em que conhecemos a Sancho – e já passaram desde então 90 capítulos, um prólogo e mais de dez anos – Dom Quixote prometeu dar-lhe o governo de uma ínsula.
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Muito se tem escrito, elaborado e interpretado sobre este episodio que sem dúvida é muito especial. Desde a consideração de Barataria como lugar utópico no qual triunfa a razão natural sobre a imposição, até a representação carnavalesca do mundo que contem. Mas Barataria não parece querer representar uma situação de mundo ao inverso, e desde o começo Cervantes parece querer dar isso a entender ao por essas primeiras reflexões sobre o abuso no uso de títulos, neste caso do dom – um bocado ao modo que hoje em dia se estende o senhor doutor em qualquer bar lisboeta, não é verdade senhor ingenheiro? – nas palavras de Sancho. Estas, alem de surgir em conformidade com ideias que deviam ser conformes a um dos tópicos da Espanha do 1600, também dão-nos de começo uma clara pista que o governo de Sancho será surpreendentemente sensato.
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Assim ao flamante governador são-lhe expostos três primeiros pleitos. O primeiro deles muito provavelmente seja tirado da tradição oral, se esse for o caso, Cervantes tira partido duplamente,  já que, primeiro o eleva a categoria de “literário”, mas também de este modo deixa aberta a possibilidade de que Sancho conhecesse a historia por esta fazer parte do folklore hispano, e assim soubesse como resolve-lo de modo tão “salomónico”. Os que lhe seguem, por sua vez, provém da tradição escrita, o do báculo aparece em várias compilações de livros de Exempla  - ao modo das Historias Ejemplares do proprio Cervantes – e o da mulher supostamente violada e referido num compendio de 1531 de fray Francisco de Osuna: Norte de los estados.
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Mas dar resolução a estes casos pressupõe uma sagacidade e inteligência muito acima da media que nos leva seja a evocar o louco clarividente erasmiano, seja imaginar que estas vinham também da tradição oral. Segundo os preceitistas da época os escritores deviam manter-se dentro do verosímil, e Cervantes não ignorava esta regra, mas como veremos mais para frente, todo este grupo de capítulos que contam a governança de Sancho na Barataria, assentam no principio do “burlador burlado” como até virá a confessar o mordomo do duque no capítulo 49. O leitor, deste modo, se não fica do lado do burlado, fica, pelo menos, do lado do desconcerto.
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Intercalam-se com a governança os acontecimentos no palácio entre DQ e Altisidora. DQ  tenta acalmar os ardores da apaixonada donzela retribuindo o canto. Mas enquanto o faz a sua estancia é alvo de uma invasão inesperada, que dará lugar a uma “desigual batalla” entre o cavaleiro e um tropel de gatos. Um ataque vil, que só poderia vir da mão de encantadores ciumentos e perversos. Os arranhões serão tais que durante sete dias o nosso herói não poderá aparecer em público.
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O regresso a Barataria se faz a traves de um tema tradicional, o da comida escamoteada, que fora tratado em imensos relatos e entremeses, e que faz parte da tradição oral. Cervantes parece querer indicar-nos isto mesmo ao representar outra vez o tema, que já tinha sido tratado no episodio das bodas de Camacho, mas esta vez faze-lo num tom que é inequivocamente o da representação teatral. Cervantes encena assim a “conspiração infernal” com a qual o possuidor de riqueza – o duque –, ao que vem somar-se o detentor de saber – o médico –, conseguem submeter ao indigente e indefeso estômago de Panza. Ainda mais que nas cenas judicias estamos no terreno da burla.
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Seguir-se-ão os impertinentes pedidos do lavrador Miguel Turra e o próprio Cervantes vincula os episódios: “Mais um Tirteafora temos!”, mas Sancho terá dado já os primeiros sinais de desengano em relação as delicias e maravilhas do poder. A sua paciência não parece ser tão sólida quanto o mostrou ser o seu engenho, enfurece-se frente ao lavrador ameaçando romper-lhe a cabeça – como já tinha feito frente ao médico – e Cervantes sublinha subtilmente esta sua perca de controlo a traves da linguagem: Sancho abandona os cultismos que tinha utilizado no tribunal para refugiar-se alinhando refrães e assim deixando de seguir os conselhos do seu amo.
  
  
Nestes “segundos conselhos” do capítulo 43 DQ põe uma maior ênfase nos aspectos exteriores, na comida, no modo de falar, andar e vestir e até nas unhas, denunciando deste modo a importância que já naquele tempo se dava as aparências e ao facto que estas sejam percebidas e consideradas em muito como um elemento mais importante que os princípios no que respeita ao bom governar.
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<div class=direita> AGZ – 7 de Fevereiro de 2013. </div class=direita>  
 
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Sancho através de provérbios e ditos populares, expressa o seu sentido comum e a sua inteligência instintiva com a que demonstra o seu conhecimento da natureza humana que preanuncia o seu bom juízo na hora de vir a governar e tomar decisões. Cervantes parece deste modo sugerir a sua adesão à posição daqueles que consideram a lei natural superior à escrita, tema controverso no debate clássico sobre a questão de saber se o bom governador nasce ou aprende a sê-lo.
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Mas os próprios comentários de Cervantes, por sua vez, são comentados pelo próprio, voltando a esse jogo de afirmações e contradições a que o genial escritor e tão afecto: Enquanto que Cide Hamete diz que os comentários de DQ são de “gran donaire” o comentador refere que estes têm o “don del Aire” ou seja que estão cheios de ar, vazios; e lá onde DQ se imagina um novo Catão ao estilo de Marco Porcio “o censor” pela sua habilidade em dar bons conselhos, Cervantes declara-se tacitamente um novo Catão pensando naquele que era apodado de “sereia latina” pela sua habilidade em criar poética ou metaforicamente um contexto incisivo e satírico de crítica social apenas através das palavras.
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O começo do capítulo 44 é um dos mais extraordinários de toda a novela. É muito difícil, por não dizer impossível, decifrar no plano em que este se situa, assim como o comentador do mesmo. Fazendo referência aos problemas de tradução do capítulo, Cervantes comenta as crítica que foram feitas e a sua aceitação das mesmas em relação ao artifício das novelas intercaladas, e é notável o modo que encontra para desenvolver o tema, ao integrá-lo nos protestos que Benengeli faz contra o difícil que resulta atingir-se exclusivamente a narração dos acontecimentos relacionados com a história principal sem comentar aquilo que é periférico. É particularmente surpreendente que um fragmento de tanta importância e significação teórica seja exposto de um modo tão burlesco e pouco convencional e o faça aliás no começo de um capítulo que não parece ter outro objecto senão fazer a transição entre a estadia de Sancho no castelo e a viagem deste para tomar posse do governo da ínsula.
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Notável também é o facto do pouco espaço que ocupa a partida de Sancho, a pesar da importância que tem na história. A partida, por sua vez, põe a descoberto a total solidão em que se encontra o cavaleiro sem a presença do seu escudeiro. A consequência directa desta solidão é que vão multiplicar-se à sua volta o que ele considerará como perigosos atentados e tentações que porão a duras provas a sua inquebrantável fidelidade à sua senhora Dulcineia. O tema será introduzido pela proposta da duquesa de que quatro das suas mais belas donzelas atendam ao serviço pessoal de DQ para remedar a falta do escudeiro, e vai chegar ao seu máximo desenvolvimento com a aparição de Altisidora.
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Com o disparatado romance cantado pela suposta apaixonada Cervantes invoca uma situação de mundo ao contrário absoluto, pondo em cena uma declaração de amor feita por uma lindíssima jovem de quinze anos a um velho cinquentão roto, desdentado, louco e alucinado. O canto de Altisidora não faz senão amplificar aquela que tinha sido a segunda intervenção de Cide Hamete: homenagem directa ao Lazarillo de Tormes, trata-se de uma referência a uma pequena desgraça pessoal, apresentada como um delicado comentário ao tema da vergonhosa pobreza dos fidalgos sem recursos que faz eco ao assunto das aparências a que referia o próprio DQ nos seus conselhos sobre o bom governar.
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<div class=direita> AGZ
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24 de Janeiro de 2014 </div class=direita>  
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links úteis :  
 
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[http://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte2/cap43/default.htm CAPÍTULO XLIII]
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[http://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte2/cap45/default.htm CAPÍTULO XLV]
  
[http://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte2/cap44/default.htm CAPÍTULO XLIV]
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[http://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte2/cap46/default.htm CAPÍTULO XLVI]
  
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[http://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte2/cap47/default.htm CAPÍTULO XLVII]
  
  

Revisão das 15h47min de 7 de Fevereiro de 2014


Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



Barataria.png


Sessão 48 – Segunda, 10 de Fevereiro de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 45, 46 e 47 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Desde o mesmo parágrafo em que conhecemos a Sancho – e já passaram desde então 90 capítulos, um prólogo e mais de dez anos – Dom Quixote prometeu dar-lhe o governo de uma ínsula. Muito se tem escrito, elaborado e interpretado sobre este episodio que sem dúvida é muito especial. Desde a consideração de Barataria como lugar utópico no qual triunfa a razão natural sobre a imposição, até a representação carnavalesca do mundo que contem. Mas Barataria não parece querer representar uma situação de mundo ao inverso, e desde o começo Cervantes parece querer dar isso a entender ao por essas primeiras reflexões sobre o abuso no uso de títulos, neste caso do dom – um bocado ao modo que hoje em dia se estende o senhor doutor em qualquer bar lisboeta, não é verdade senhor ingenheiro? – nas palavras de Sancho. Estas, alem de surgir em conformidade com ideias que deviam ser conformes a um dos tópicos da Espanha do 1600, também dão-nos de começo uma clara pista que o governo de Sancho será surpreendentemente sensato. Assim ao flamante governador são-lhe expostos três primeiros pleitos. O primeiro deles muito provavelmente seja tirado da tradição oral, se esse for o caso, Cervantes tira partido duplamente, já que, primeiro o eleva a categoria de “literário”, mas também de este modo deixa aberta a possibilidade de que Sancho conhecesse a historia por esta fazer parte do folklore hispano, e assim soubesse como resolve-lo de modo tão “salomónico”. Os que lhe seguem, por sua vez, provém da tradição escrita, o do báculo aparece em várias compilações de livros de Exempla - ao modo das Historias Ejemplares do proprio Cervantes – e o da mulher supostamente violada e referido num compendio de 1531 de fray Francisco de Osuna: Norte de los estados. Mas dar resolução a estes casos pressupõe uma sagacidade e inteligência muito acima da media que nos leva seja a evocar o louco clarividente erasmiano, seja imaginar que estas vinham também da tradição oral. Segundo os preceitistas da época os escritores deviam manter-se dentro do verosímil, e Cervantes não ignorava esta regra, mas como veremos mais para frente, todo este grupo de capítulos que contam a governança de Sancho na Barataria, assentam no principio do “burlador burlado” como até virá a confessar o mordomo do duque no capítulo 49. O leitor, deste modo, se não fica do lado do burlado, fica, pelo menos, do lado do desconcerto. Intercalam-se com a governança os acontecimentos no palácio entre DQ e Altisidora. DQ tenta acalmar os ardores da apaixonada donzela retribuindo o canto. Mas enquanto o faz a sua estancia é alvo de uma invasão inesperada, que dará lugar a uma “desigual batalla” entre o cavaleiro e um tropel de gatos. Um ataque vil, que só poderia vir da mão de encantadores ciumentos e perversos. Os arranhões serão tais que durante sete dias o nosso herói não poderá aparecer em público. O regresso a Barataria se faz a traves de um tema tradicional, o da comida escamoteada, que fora tratado em imensos relatos e entremeses, e que faz parte da tradição oral. Cervantes parece querer indicar-nos isto mesmo ao representar outra vez o tema, que já tinha sido tratado no episodio das bodas de Camacho, mas esta vez faze-lo num tom que é inequivocamente o da representação teatral. Cervantes encena assim a “conspiração infernal” com a qual o possuidor de riqueza – o duque –, ao que vem somar-se o detentor de saber – o médico –, conseguem submeter ao indigente e indefeso estômago de Panza. Ainda mais que nas cenas judicias estamos no terreno da burla. Seguir-se-ão os impertinentes pedidos do lavrador Miguel Turra e o próprio Cervantes vincula os episódios: “Mais um Tirteafora temos!”, mas Sancho terá dado já os primeiros sinais de desengano em relação as delicias e maravilhas do poder. A sua paciência não parece ser tão sólida quanto o mostrou ser o seu engenho, enfurece-se frente ao lavrador ameaçando romper-lhe a cabeça – como já tinha feito frente ao médico – e Cervantes sublinha subtilmente esta sua perca de controlo a traves da linguagem: Sancho abandona os cultismos que tinha utilizado no tribunal para refugiar-se alinhando refrães e assim deixando de seguir os conselhos do seu amo.


AGZ – 7 de Fevereiro de 2013.


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links úteis :

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CAPÍTULO XLVI

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