Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



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Sessão 46 – Segunda, 13 de Janeiro de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 41 e 42 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


É um inspiradíssimo Cervantes que escreve estes capítulos (41 e 42). Dá a impressão de ter ido buscar ao seu próprio texto o tema do cavalo mágico e a sua “cravilha” que já tinham sido mencionados na primeira parte numa conversação sobre os livros de cavalarias entre Dom Quixote e o cónego : “¿quién podrá negar no ser verdadera la historia de Pierres y la linda Magalona, pues aun hasta hoy día se vee en la armería de los reyes la clavija con que volvía al caballo de madera sobre quien iba el valiente Pierres por los aires, que es un poco mayor que un timón de carreta? Y junto a la clavija está la silla de Babieca.” – DQI cap 49.

E agora Cervantes simplesmente desenvolve aquela ideia: O episódio de Cravilenho / Clavileño é uma paródia de um motivo recorrente nos livros de cavalarias que, aliás vem de muito longe. Encontra-se já nas “Mil e uma noites” na história do cavalo de ébano, e provavelmente de lá se tenha divulgado pela Europa. Conhece-se em finais do século XIII uma reelaboração feita pelo trovador Adenet le Roi, que faz dele uma novela em verso que leva por título Cléomadès ou le cheval de fust. A obra relata como o herói voa pelos ares com a sua amada, a princessa Clarmondine, num cavalo de madeira apetrechado com quatro cravilhas que fora fabricado pelo rei mouro Comprart de Bujia. Deste e diversas prosas que foram feitas a partir dele derivam varias versões em França, que por sua vez foram traduzidas ao italiano, e também em Espanha. Os comentaristas acham que Cervantes teria conhecido o livro espanhol Historia del muy valeroso y esforzado caballero Clamades, hijo de Marcaditas, rey de Castilla, y de la linda Clarmonda, hija del rey de Toscana (Burgos, 1521) e que através dele tivesse tido conhecimento do tema e que tenha sido precisamente este que tenha confundido ou fusionado com outro sobre a história de Pierres e a linda Magalona, amantes que fugaram a cavalo, mas montados em dois cavalos em nada mágicos. De Clamades y Clarmonda, no entanto, diz-se explicitamente que ela «subió çaga dél», ou seja do mesmo modo que Sancho senta-se aqui parodicamente sobre Clavileño, como o faziam as senhoras.

A estrutura deste capítulo cheio de referências e alusões literárias está organizada de modo a que cada uma das ações termine num divertido colóquio entre as personagens. Isto acontece à chegada de Cravilenho, à subida nele de DQ e Sancho, ao “voo” que eles fazem e à desastrada “aterragem”.

Merece a pena recordar o contexto em que tudo isto acontece: o luxo da “mise en scène” e da corte ducal. Os duques e o seu séquito assistem ao delírio de DQ que além da cavalaria também diz respeito a cosmologia, mas também ao medo e desamparo de Sancho, que equipara-se ao papel feminino atribuído nas histórias as quais se faz referencia, coisa esta que, sem dúvida não pode ter escapado a percepção dos espectadores, e que chega ao paroxismo quando, ao final do episódio este conta como “desde a altura” viu o diminuto tamanho da Terra. Cervantes inspira-se numa larga tradição literária de viagens celestes que nasce com Somnium Scipionis e De consolatione philosophiae de Cícero e Boécio respectivamente. Mas também a “ascensão” de Sancho se contrapõe e ao mesmo tempo continua a descida na cova de Montesinos do próprio DQ. Um Sancho que se aproxima da personagem do pícaro, que mente descaradamente, mas que quando se lhe oferece sua tão sonhada governação preferiria uma “pequenina parte do céu, ainda que não fosse mais que meia légua” que “recebê-la-ia com melhor vontade que a maior ínsula do mundo”.

Entra-se assim nos preparativos, de parte e outra, da governação da ínsula de Barataria. DQ, que nem suspeita tratar-se isto de uma broma, dispõe-se a aconselhar Sancho de como desempenhar as funções de governo. Estes conselhos, que continuarão mais à frente, estão cheios das mais variadas referencias que vão dos clássicos gregos à literatura moralista e as obras filosóficas até os ditos populares, histórias de tradição folclórica e, claro, a própria literatura cavaleresca. Ao ser-se lidos com atenção, podem-se notar certos descuidos e erros, mas o mais interessante é que Cervantes recorre também à contradição desdizendo em alguns o exposto em outros, o que, ligado a estes “descuidos” e “erros” deixa uma zona de contornos indefinidos, uma espécie de território de ninguém, onde nada é seguro do ponto de vista da veracidade e convicção daquilo que e afirmado como tal. Por último não se pode deixar de pensar que Cervantes aproveite a ocasião para delatar os abusos do sistema jurídico na Espanha filipina, denunciando o favorecimento dos privilegiados em detrimento dos mais fracos, que vai contra os princípios cristãos e o modelo de honra que vigorava na época (ao menos no discurso).

Talvez o mais extraordinário destes conselhos é que, do modo simples em que são expostos, encontram-se ao alcance do leitor mais ingénuo de um modo imediato e desprovido de ambiguidades, mas que, se o leitor se aprofunda neles dá com uma série de comentários que se encontram a meio caminho entre o texto explícito e o texto alusivo, e que ambos podem ser entendidos de modo direto ou num sentido totalmente subvertido. E esta é outra das grandezas que Cervantes tem trazido à prosa e à arte de narrar.

AGZ - 12 de Janeiro de 2014


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