Um projecto do São Luiz Teatro Municipal
comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque
Sessão 51 – Segunda, 24 de Março de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 52, 53 e 54 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
Comentario dos capítulos 52, 53 e 54 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
Estes capítulos finalizam a alternância dos anteriores dedicados a DQ ou a Sancho separadamente, e isto por sua vez preanuncia o próximo fim da estancia dos nossos heróis na corte dos duques.
O capitulo 52 como o anterior, começa com uma referencia a Cide Hamete que não parece significativa, mas que, de todos modos serve a que tenhamos pressente quem é que está a narrar esta verdadeira historia. Mais importante tal vez seja o anuncio que DQ começa a meditar em abandonar o castelo e retomar o caminho da andante cavalaria.
Escrito um bocado ao modo dos próprios livros de cavalarias, nos quais a estadia num palácio serve como parêntesis das fantasiosas batalhas e para desenvolver neles as historias de amor galantes, o modo de Cervantes, como sempre, altera o modelo mas sem deixar de referi-lo, com a aparição de duas mulheres viúva uma, órfã a outra, a pedir reparação e justiça. Trata-se da continuação do episodio de Dona Rodrigues, que parecia já acabado e esquecido: agora a dona faz-se conhecer, e, cumprindo todos os requisitos do género, pronuncia um divertido discurso num estilo que calca aqueles que em semelhantes ocasiões podem-se ler nos livros de cavalarias, não deixando de parte nem sequer os arcaísmos, isso sim, agora misturados com expressões vulgares que denunciam a verdadeira condição da demandante. O discurso, pode-se dizer, continua a sua descida e, ao chegar às cartas de Teresa Pança, tal vez venha a assinalar a equivalência de classe entre estas mulheres.
A resposta de DQ não pode ficar atrás do tom e do estilo impostos pela dona e assim, num arranque emocional, eleva-se até equiparar-se com a divina providencia, para logo rectificar o excesso e voltar a um tom um bocado mais acorde as circunstancias. A exaltação fica em evidencia no momento em que aceita rebaixar-se a combater com um vilão, coisa esta fora da ordem da cavalaria.
O duque vê mais uma ocasião que não desperdiçara para fabricar uma nova burla a partir desta inesperada e surreal realidade que se apresenta: prepara-se para a realização de um torneio, mas outra vez a acção fica suspensa pela chegada do pajem com as cartas de Teresa Pança. Estas cartas vem em certo modo também fechar o conjunto epistolar anterior: a carta de Sancho a Teresa no cap.36; a do duque a Sancho no cap.47; a da duquesa a Teresa Pança no cap.50; e as de DQ a Sancho e a resposta deste no cap.51. Toda elas, comportam um certo grau de parodia ao género epistolar, naquele tempo muito apreciado pelos humanistas e os teóricos políticos e filosóficos. Também como nas novelas que contem epístolas, as cartas servem de reflexão sobre as historias o episódios que nelas se inserem, mas nas de Teresa Pança, alem destes aspectos paródicos evidentes, Cervantes desenha um quadro de costumes muito realista, desenhando a partir de uma grande sensibilidade social e, partindo da burla habitual que é feita aos rústicos, e não deixando de lado a ilusão e credulidade de Teresa e a sua filha, chega depois a outros aspectos da realidade imediata: o preço do pão e da carne, a carência de bolotas, a falta de azeitonas e de vinagre em toda a vila.
Outra utilização que faz Cervantes do género epistolar diz respeito a um dos recursos mais importantes e característicos de sua escrita: a descrição dos mesmos feitos desde perspectivas diferentes e as vezes também diferenciadas segundo o destinatário a quem vai-se contar. E mais correspondências vai estabelecer o autor a partir das noticias que da Teresa e que parecem não ter muita importância, assim a do pintor que não domina a sua arte – pequena historia moral, que não deixa de ter uma componente social e de classe – segue a das moças que foram levadas pela companhia de soldados, que não deixa de corresponder com o caso da filha de dona Rodrigues, mas que classe social de por médio, no caso das aldeãs pobres, não terá resolução de honra, como vai ter que ser o caso da filha da dona que foi seduzida pelo filho dum lavrador rico ao qual apoia o duque.
Cervantes ainda da eco ao sucesso de Sancho a traves duma das cartas de Teresa e a seguir a este canto triunfal, muda de tonalidade com o lamento que põe em boca de Cide Hamete que nos adverte que nada perdura e que a vida humana não é mais que vanidade. E assim, durante a sétima noite do seu governo, o barulho da “rebelião” vai acordar duplamente a Sancho. Os gritos, os archotes acesos no meio da escuridão, e com o pretexto de equipa-lo para o combate, a sua imobilização, a queda e o caminharem-lhe por cima – coisas estas muito mais terríveis que o manteamento que tanto tinha feito sofrer ao escudeiro e do qual tanto se tinha queixado e falado na primeira parte, dão lugar a decisão – esta sim, irrevogável – de abandonar o governo e a ínsula imediatamente, coisa que faz sem contemplações e sem seguir nenhuma das consignas que lhe são solicitadas, que alias correspondem ao sistema de corregimentos da época. A resposta de Sancho e simples e contundente: ele não tem que aceitar nenhuma inspecção, porque vai-se embora tão pobre quanto chegou.
Ridiculizado e até cosificado não só pelos seus “governados” senão até pelo narrador, pode-se ler entrelinhas uma visão espiritualista que transfigura o fracasso em trunfo: ao chegar o sétimo dia Sancho vai ter finalmente direito ao repouso. Com humildade, com santidade incluso, abandona o poder terreno, renuncia a ambição mundana e mostra-se assim finalmente sublime, não só pela sua renuncia, Senão pela sua actuação como provedor de justiça, muito por encima da dos governantes da realidade: Sancho não se tem enriquecido.
Alem da utopia carnavalesca que representa todo o episodio de Barataria, o desenlace também pode ter uma leitura militar: Bom juiz e administrador, Sancho mostra-se mau capitão, incapaz de enfrentar-se com uma rebelião armada. Confirmando nesse sentido a ideia expressada por DQ no seu famoso discurso da primeira parte (I, 37-38), no qual diz que o valor guerreiro é insubstituível. A colisão entre o enfoque da utopia carnavalesca e o discurso das armas e das letras, incluso quando a renuncia de Sancho significa uma volta à ordem normal das coisas, representa uma certa mordacidade satírica contra o afã de lucro frequente e também contra a pretensão dos letrados da época de usurpar cargos que, segundo DQ e o próprio Cervantes correspondem aos próprios soldados.
De todos modos nos encontramos no momento mais alto da evolução de Sancho como pessoa. Ele acaba de mostrar-se muito sagaz respeito a suas capacidades de julgar a conduta humana, incluindo a sua própria, e valorará a sua renuncia do governo ao momento de ser sincero com seu ex-vizinho o mourisco Ricote que por sua vez tem-lhe contado secretos muito comprometedores. Fiel ao orgulho que sempre tem demonstrado da sua condição de cristão velho, Sancho vai se negar a participar na pesquisa do tesouro escondido pelo seu vizinho e não vai ajuda-lo encobrindo-o.
Cervantes serve-se de Sancho como testemunha para relatar feitos que comocionam a vida espanhola de aquele tempo. A expulsão dos mouros ainda não é Historia, senão actualidade na Espanha filipina, e trata-se de uma questão social e politica de envergadura que preocupa particularmente ao autor, que também falará dela no Persiles. É muito original o modo que Cervantes utiliza: Confessando ter chorado aquele dia, Sancho conta a saída dos mouros da sua vila a um deles, ausente naquele dia, e que saberá pelo conto de Sancho como, rodeadas do afecto impotente dos vizinhos, viveram essa má hora a sua mulher e a sua filha.
O tratamento da expulsão mantém-se fiel aos feitos, incluso na caracterização das atitudes humanas. Nesse sentido, a historia mais interessante tal vez seja a do cunhado de Ricote, que representa a posição maioritária do mouro cripto-musulmão, totalmente indefinido religiosamente o que o leva a intentar soluções diferentes à emigração a terras islâmicas, tudo aquilo que era muito comum nos novos convertidos, assim como a piedade católica que é atribuída a mulher e a filha de Ricote, e a inclusão deste num grupo de pedintes alemães, a dor dos vizinhos, e a força do namoro do morgado rico, que apoia-se alias em vários escritos que deploram a capacidade de sedução das mulheres mouriscas. Cervantes dá-nos a conhecer o perfil de uma família de novos convertidos e como esta vive o processo de assimilação ao momento em que se pratica o desterro. Difícil de esquecer, evidentemente a influencia dos anos de cativeiro sofridos pelo autor ao momento de narrar um episodio que diz respeito a relação do homem com os outros, a das minorias com a sua terra.
AGZ
23 de Março de 2013
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