Um projecto do São Luiz Teatro Municipal
comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque
Capítulos 64, 65 e 66 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha
9 de Junho, pelas 21:00 no Teatro São Luiz
>>Voltamos ao sub-palco - entrada pela dos artistas<<
Temas:
O cavaleiro da Branca Lua – a derrota de DQ – DQ vencido – a liberdade de dom Gregório – a saída de Barcelona – o caminho de regresso – o encontro com Tosilos.
Caros Quixotes, queridos Leitores,
Estamos a 10 capítulos do fim do livro e Cervantes vai claramente construindo o puzzle que nos leva ao seu final.
Ao contrário de Carlos Romero Muñoz, comentador do Quixote no Cervantes Virtual (comentário do capítulo 66), estou absolutamente convencida que na arquitetura do livro estava prevista por Cervantes a visita à tipografia, e que portanto essa não é uma mera reação à publicação da segunda parte do Avellaneda. Tal como no início do primeiro livro assistimos a um auto da fé de livros - o episódio da queima dos livros no capítulo 6 - na sequência da qual o Quixote não voltará a ler mais nenhum, era lógico que também tínhamos de assistir a um nascimento de livros (II cap. 63), e o confronto da nossa personagem com a tecnologia que está na sua origem, e já agora na cidade emblemática da tipografia, Barcelona. Também estou convencida que a visita a esta cidade, primeira e única cidade das aventuras de
D. Qui, a vista do mar e o passeio nas galeras, faziam falta e estavam previstas pelo autor neste livro que tem um aspecto compilatório-catálogo a vários níveis : nas referências, géneros literários, descrição de ambientes e estilos de vida, modos de comportamento social, vozes e modos de falar, mas que também contém múltiplos aspectos autorreferenciais e biográficos.
Seja como for, nos capítulos desta próxima sessão, inicia-se o regresso do nosso cavaleiro à sua aldeia natal.
Não é um regresso feliz ou em glória, pois D. Qui parte derrotado pelo Cavaleiro da Branca Lua.
Esta última derrota do Quixote é significativa e definitiva pois, ao contrário das outras, esta derrota não é meramente física. É uma derrota moral e espiritual cujo motor principal parece ser de facto o tal Avellaneda, não já em si, mas pelo que nos parece que ele significa para Cervantes e que transfere para este seu “filho do entendimento”, esta sua obra final. O resultado principal é vermos o nosso cavaleiro exposto cada vez mais ao ridículo (e o ridículo mata) mas a um ridículo social, maldoso e mordaz, dos duques, dos burgueses, da populaça, em encenações grotescas cada vez mais longínquas das aventuras de cavalaria que o D. Quixote decidira “empersonificar”. É a “história” ou a “realidade” a ganhar cada vez mais ascendente sobre o mundo ideal do Qui, mundo que, embora louco, era um lugar de confiança e de esperança na bondade e sobretudo na justiça. É precisamente a justiça (ou as injustiças da história) que nós sentimos severamente atacada e até parodiada neste final de livro, por exemplo a inquisição e a conversão dos mouros, são factos da história contemporânea do Quixote, e não é difícil adivinhar na forma como estes temas são abordados uma boa carga de ironia, disfarçada, mas muito presente. Veja-se a explicação técnica do funcionamento da cabeça encantada versus a diabolização da máquina pela Inquisição ou, o exagero delirante da história de Ana Félix, do renegado e da sua conversão contra todo tipo de verosimilhança.
Assim podemos considerar que ao mesmo tempo que D. Qui sucumbe à “história/a realidade”, esta sucumbe à pena do escritor, num movimento pendular a que Cervantes já nos habituou tantas vezes.
Transcrevo o que AGZ nos diz nas suas “Anotaciones sobre el Quijote” :
“Puesto que Don Quijote quiere encajar el mundo en su lectura: En tanto que lector de libros de caballerías que obsesivamente intenta transferirlas a la realidad, don Quijote fracasa. Pero en cuanto objeto de lectura, comienza a vencer la realidad; a contaminarla de su propia – y delirante – lectura; y así podemos deducir o ser inducidos a pensar que transforma el mundo, porque este comienza a parecerse mas al mundo de Don Quijote.
El mundo, por su vez, parece querer vengarse de Don Quijote a través de aquellos que leyeron el Quijote en el propio Quijote: A través de su crueldad, ignorancia o estupidez : Hay así una tesis épica y una antítesis realista, de la que surge una síntesis – nada sintética, dicho sea – lógica, y esta es una novela polivalente, primordial.
Dostoievsky define Don Quijote como sufriendo de la nostalgia del realismo. La prueba sería la parte final desde la realidad palaciana que encuentra en la corte de los duques, a la que seguirá el personaje verídico de Roque Guinart y el combate marítimo en el cual verá por primera vez muertes reales. Don Quijote deja de ser actor para ser un mero espectador. Y vuelve a ser “el caballero de la triste figura”, no ya en la acepción de lo desfigurado y tragicómico de su desdentada y apaleada fisonomía, sino en la simple y triste tristeza de ya no tener cabida en una realidad que no espera por él: Aristóteles al hablarnos del centauro nos habla de una mitología que tiene raíces en lo posible, nos dice Ortega y Gasset al explicarnos su imposibilidad biológica para nosotros. Es de ese realismo sin contradicción que quizás el Don Quijote visto por Dostoievsky tiene nostalgia.”
Outras linhas se cozem ainda nestes capítulos com o reaparecimento do bacharel Sansão Carrasco, aliás Cavaleiro dos Espelhos, aliás Cavaleiro da Branca Lua, que vence finalmente o corpo e o espírito do nosso Quixote logrando convencê-lo a regressar à sua aldeia. Note-se que debaixo dos espelhos que simbolizam a complexa relação entre realidade e ficção contida no livro, e da Branca Lua – que simbolizará a morte, está afinal Carrasco, aquele que sacrifica o sonho e escolhe por missão impor “a realidade” ao Quixote. Personagem real e pragmática o bacharel dos múltiplos disfarces é a antítese de Dulcineia, imaginária e jamais vista, em permanente estado de encantamento.
Note-se ainda a ascensão intelectual de Sancho, que começando por ser um labrego de bom coração, chega a este ponto com diálogos como este que não resisto a transcrever :
“Ao sair de Barcelona, voltou D. Quixote a olhar o sítio onde caíra, e disse:
— Aqui foi Tróia! Aqui a minha desdita, e não a minha cobardia, levou as glórias por mim alcançadas; aqui a fortuna usou comigo as suas voltas e reviravoltas; aqui se obscureceram as minhas façanhas; aqui, finalmente, caiu a minha ventura para nunca mais se levantar! Ao ouvir isto Sancho, disse:
— Tão próprio de valentes corações é, meu senhor, sofrer nas desgraças como alegrar-se nas prosperidades; e isto julgo-o por mim mesmo, que se quando eu era governador estava alegre, agora, que sou escudeiro a pé, não estou triste, porque tenho ouvido dizer que esta a que chamam por aí Fortuna é uma mulher bêbeda e caprichosa, e, sobretudo, cega, e deste modo não vê o que faz, nem sabe quem derruba nem quem exalta.
— Muito filósofo estás, Sancho — respondeu D. Quixote —; muito sensatamente falas; não sei quem to ensina”
Tirada que nos faz irresistivelmente lembrar o “Metafísico estás – es que no como senhor” do diálogo de Babieca e Rocinante dos versos preliminares ao livro I.
Como sugere AGZ nas suas “Anotaciones sobre el Quijote” Sancho afinal é talvez – com o leitor – o grande vencedor de toda a história. Sancho não é derrotado, Sancho não enlouquece, Sancho enquixotece. Esta quixotisação de Sancho a que se refere também Fernando Lázaro Carreter, no estudo “As Vozes do Quixote”, é também a quixotização do mundo e a melhor demonstração do génio de Cervantes.
Ainda, se dúvidas nos restassem quanto à oralidade desta obra e a sua vocação para ser lida em voz alta : veja-se o título do capítulo 66: Que trata do que verá quem o ler ou ouvirá quem escutar a sua leitura. Como fazemos nós.
Realço, para acabar, o jogo de palavras do final do capítulo 66, presente no diálogo entre o lacaio Tosillos e Sancho Pança em que o dever de “deve ser” se transforma simplesmente em “dever” de “estar em dívida”:
— Sem dúvida este teu amo, Sancho amigo, deve ser um louco.
— Como deve? — respondeu Sancho. — Não deve nada a ninguém: pois paga tudo, e mais quando a moeda é loucura. Bem o vejo eu e bem lho digo a ele. Mas — que adianta? E mais agora, que vai de juízo completamente perdido, porque foi vencido pelo Cavaleiro da Branca Lua.
Lembremo-nos para que para o Quixote (Cervantes) a ingratidão – o desagradecimento - é o pior pecado que os homens cometem (II cap 58):
—Entre los pecados mayores que los hombres cometen, aunque algunos dicen que es la soberbia, yo digo que es el desagradecimiento, ateniéndome a lo que suele decirse: que de los desagradecidos está lleno el infierno. De este pecado, en cuanto me ha sido posible, he procurado yo huir desde el instante que tuve uso de razón, y si no puedo pagar las buenas obras que me hacen con otras obras, pongo en su lugar los deseos de hacerlas, y cuando estos no bastan, las publico, porque quien dice y publica las buenas obras que recibe, también las recompensara con otras, si pudiera; porque por la mayor parte los que reciben son inferiores a los que dan, y así es Dios sobre todos, porque es dador sobre todos, y no pueden corresponder las dádivas del hombre a las de Dios con igualdad, por infinita distancia, y esta estrecheza y cortedad en cierto modo la suple el agradecimiento. […]
Oyendo lo cual Sancho, que con grande atención le había estado escuchando, dando una gran voz dijo:
—¿Es posible que haya en el mundo personas que se atrevan a decir y a jurar que este mi señor es loco? Digan vuestras mercedes, señores pastores: ¿hay cura de aldea, por discreto y por estudiante que sea, que pueda decir lo que mi amo ha dicho, ni hay caballero andante, por más fama que tenga de valiente, que pueda ofrecer lo que mi amo aquí ha ofrecido?
Penso que estas palavras de Sancho são excelentes para acabar este comentário e fazer-nos pensar na infinita capacidade de dar e transformar contida numa obra como esta. No que devemos a Cervantes e uns aos outros e à possibilidade de estar aqui e agora.
Um abraço
Teresa
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