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− | + | No episódio que vamos começar nesta sessão, Cervantes – a pesar das dúvidas explicitadas no capítulo terceiro, relacionadas com a inclusão de novelas curtas dentro do relato – volta a utilizar a técnica a qual já nos tinha habituado na Primeira parte, mas agora de um modo aperfeiçoado, já que estas novelas ou histórias secundárias passam a integrar a trama do relato principal. | |
− | + | Iremos assistir assim às bodas do rico Camacho, mas o nosso autor não deixa mais uma vez de surpreender transformando o episódio pastoril numa adaptação complexa e inesperada de uma variação – muito provavelmente da sua própria invenção – da história de Píramo e Tisbe. A história dos amores de Quitéria e Basílio, que nos é assim contada, sai do molde tradicional da fábula que, vale a pena relembrar, é o seguido por Shakespeare na tragédia de Romeu e Julieta. | |
− | Agustín Redondo faz notar que os nomes de Quitéria e Basílio referem a santos que por sua vez referem ao desenrolar dos acontecimentos, o que já não nos surpreende na complexa trama a que Cervantes nos tem habituado. Mas | + | Sancho e o seu mal falar, por sua parte, conduz a uma discussão sobre o tema, durante a qual Dom Quixote é levado a afirmar que “la discreción es gramática del buen lenguaje”. O debate deriva numa reflexão sobre as relações entre natureza e arte, que termina pelo triunfo deste pois permite melhorar a primeira. Esta ideia sublinha-se no desafio dos estudantes, do qual resulta vencedor não o mais forte senão o que domina o uso da espada, arte à qual se somam a discrição e a destreza, temas estes que conhecíamos, já tendo sido tratados dez anos antes na primeira parte do Quixote, e a que talvez Cervantes tenha querido dar relevo justamente ao mesmo tempo que narrativamente nos faz voltar à técnica literária que tinha posto em causa no começo desta segunda parte. |
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+ | Também a arte está presente na transformação do prado onde virá a ocorrer o casamento. E não só: é pela indústria da arte que Basílio conseguirá triunfar e modificar o curso natural dos acontecimentos... | ||
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+ | A seguir vemos Sancho como se fosse pintado por Brueghel bebendo vinho e saciando a sua fome ancestral com uma voracidade carnavalesca. O campesino pobre que é tinha-se primeiro inclinado a favor de Basílio na disputa pela bela Quitéria, mas a abundância alimentar da boda leva-o a mudar de opinião e defender o ponto de vista do rico Camacho. E Dom Quixote seguirá justamente o caminho oposto, num jogo de reversibilidade com o qual Cervantes mais uma vez parece querer dar-nos a entender a importância que dá, e que tem nesta história, a mudança de perspectivas e a complexidade da realidade. | ||
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+ | O artificio continua através de umas danças faladas alegóricas nas quais Cupido e o Interesse lutam por uma donzela. O significado, desta vez é simples de compreender: Amor já não é o deus ao que Petrarca nos tinha habituado, que triunfa sobre todos os obstáculos; este foi substituído pelo dinheiro, esse “poderoso cavaleiro” que já na Espanha em crise de finais do século anterior – e estamos a falar do século XVI – tudo submete à sua lei. Bem se tem apercebido Sancho, que sabe tirar a lição do episódio dizendo-nos que só há duas linhagens no mundo: a do ter e a do não ter... | ||
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+ | Chegamos assim ao fim da cena que, montada como se de um verdadeiro espectáculo teatral se tratasse, transforma-se em comédia que até tem uma tonalidade paródica que não se pode adivinhar no princípio. O triste Basílio, qual novo Cardênio, não pode senão ter o funesto destino de Grisóstomo, e quando já à beira da morte, por piedade, consegue casar com Quitéria de modo a morrer tendo sido feliz pelo menos nos últimos instantes da sua vida, o rapaz surpreende todos levantando-se, o que leva aos presentes a dizer “Milagre! Milagre!”, e ele a contestar “Milagre, milagre, não, mas indústria, indústria!”. Trata-se, claro, do triunfo de Amor sobre o Interesse... | ||
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+ | Agustín Redondo faz notar que os nomes de Quitéria e Basílio se referem a santos que por sua vez se referem ao desenrolar dos acontecimentos, o que já não nos surpreende na complexa trama a que Cervantes nos tem habituado. Mas sim pode surpreender que o nome do rico e “desilustre” Camacho tem uma correspondência que anula a sua virilidade ao Capacho do “Retablo das Maravilhas” que dentro de umas semanas iremos ler. | ||
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Edição actual desde as 11h56min de 22 de Junho de 2014
Um projecto do São Luiz Teatro Municipal
comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque
Sessão 37 – Terça 18 de Junho de 2013 – Leitura dos capítulos 19, 20 e 21 da Segunda Parte do Ingenioso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
Convidado : Luis Barros, chef do Café São Luiz
Ler a propósito de Dom Quixote e a Gastronomia
Comentario aos capítulos 19, 20 e 21 da Segunda Parte do Ingenioso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
No episódio que vamos começar nesta sessão, Cervantes – a pesar das dúvidas explicitadas no capítulo terceiro, relacionadas com a inclusão de novelas curtas dentro do relato – volta a utilizar a técnica a qual já nos tinha habituado na Primeira parte, mas agora de um modo aperfeiçoado, já que estas novelas ou histórias secundárias passam a integrar a trama do relato principal.
Iremos assistir assim às bodas do rico Camacho, mas o nosso autor não deixa mais uma vez de surpreender transformando o episódio pastoril numa adaptação complexa e inesperada de uma variação – muito provavelmente da sua própria invenção – da história de Píramo e Tisbe. A história dos amores de Quitéria e Basílio, que nos é assim contada, sai do molde tradicional da fábula que, vale a pena relembrar, é o seguido por Shakespeare na tragédia de Romeu e Julieta.
Sancho e o seu mal falar, por sua parte, conduz a uma discussão sobre o tema, durante a qual Dom Quixote é levado a afirmar que “la discreción es gramática del buen lenguaje”. O debate deriva numa reflexão sobre as relações entre natureza e arte, que termina pelo triunfo deste pois permite melhorar a primeira. Esta ideia sublinha-se no desafio dos estudantes, do qual resulta vencedor não o mais forte senão o que domina o uso da espada, arte à qual se somam a discrição e a destreza, temas estes que conhecíamos, já tendo sido tratados dez anos antes na primeira parte do Quixote, e a que talvez Cervantes tenha querido dar relevo justamente ao mesmo tempo que narrativamente nos faz voltar à técnica literária que tinha posto em causa no começo desta segunda parte.
Também a arte está presente na transformação do prado onde virá a ocorrer o casamento. E não só: é pela indústria da arte que Basílio conseguirá triunfar e modificar o curso natural dos acontecimentos...
A seguir vemos Sancho como se fosse pintado por Brueghel bebendo vinho e saciando a sua fome ancestral com uma voracidade carnavalesca. O campesino pobre que é tinha-se primeiro inclinado a favor de Basílio na disputa pela bela Quitéria, mas a abundância alimentar da boda leva-o a mudar de opinião e defender o ponto de vista do rico Camacho. E Dom Quixote seguirá justamente o caminho oposto, num jogo de reversibilidade com o qual Cervantes mais uma vez parece querer dar-nos a entender a importância que dá, e que tem nesta história, a mudança de perspectivas e a complexidade da realidade.
O artificio continua através de umas danças faladas alegóricas nas quais Cupido e o Interesse lutam por uma donzela. O significado, desta vez é simples de compreender: Amor já não é o deus ao que Petrarca nos tinha habituado, que triunfa sobre todos os obstáculos; este foi substituído pelo dinheiro, esse “poderoso cavaleiro” que já na Espanha em crise de finais do século anterior – e estamos a falar do século XVI – tudo submete à sua lei. Bem se tem apercebido Sancho, que sabe tirar a lição do episódio dizendo-nos que só há duas linhagens no mundo: a do ter e a do não ter...
Chegamos assim ao fim da cena que, montada como se de um verdadeiro espectáculo teatral se tratasse, transforma-se em comédia que até tem uma tonalidade paródica que não se pode adivinhar no princípio. O triste Basílio, qual novo Cardênio, não pode senão ter o funesto destino de Grisóstomo, e quando já à beira da morte, por piedade, consegue casar com Quitéria de modo a morrer tendo sido feliz pelo menos nos últimos instantes da sua vida, o rapaz surpreende todos levantando-se, o que leva aos presentes a dizer “Milagre! Milagre!”, e ele a contestar “Milagre, milagre, não, mas indústria, indústria!”. Trata-se, claro, do triunfo de Amor sobre o Interesse...
Agustín Redondo faz notar que os nomes de Quitéria e Basílio se referem a santos que por sua vez se referem ao desenrolar dos acontecimentos, o que já não nos surpreende na complexa trama a que Cervantes nos tem habituado. Mas sim pode surpreender que o nome do rico e “desilustre” Camacho tem uma correspondência que anula a sua virilidade ao Capacho do “Retablo das Maravilhas” que dentro de umas semanas iremos ler.
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2011
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