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+ | No original, Cervantes começa o capítulo 48 da segunda parte do Quixote assinalando mais uma vez que a passagem entre dois episódios não coincide necessariamente com a divisão dos capítulos. Neste caso, ''"además"'', Cervantes, que começa justamente por este mesmo adverbio, faz alusão directa ao comentário que ele mesmo tinha feito nos versos 22 a 24 do quarto capítulo do seu Viaje del Parnaso. Se faltasse ainda alguma prova do monumental puzzle de materiais e (auto)referencias com o qual o autor compôs este livro ímpar, fique aqui mais uma pequena amostra. | ||
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+ | O recurso a digressão, ''además'', mostra também a autonomia que Sancho tem ganhado nesta segunda parte da obra, até chegar a plena independência nestes capítulos referentes a ínsula Barataria. Sem ele, o seu lugar será neste capítulo ocupado pela Dona Rodrigues, e o capítulo todo será composto como se de um passo de entremez se tratasse. E não faltara nele nenhum dos ingredientes com os quais estes eram construídos, nem a lembrança clássica aos amores, nem a critica as donas, nem as figuras estranhas e tipificadas, e nem sequer o final às escuras e o enxerto de porrada. | ||
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+ | ''Además'', ainda há mais: sobre esta teia, Cervantes, pinta ainda certos elementos essenciais e característicos de toda a obra. Assim, o cavaleiro que espera ver-se confrontado com Altisidora para se encontrar frente a uma Dona que por sua vez confunde com uma aparição diabólica reflecte perfeitamente o contraste entre a imaginação e a realidade, e bem que possa parecer atenuado, não difere em muito com quem confunde rebanhos com exércitos ou molinhos com gigantes. | ||
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+ | Cervantes não se priva, nem nos priva a nós, de incluir dentro desta história outras histórias e situações que ficam nela encaixadas, como é o caso de, dentro da história da Dona e a da filha que ela vai-nos contar, incluir a do marido, ou a do aguazil, dando com isto, ''además'', um ar de acontecimento real àquilo que é referido. Também não deixa de tocar no tema das relações entre classes sociais, assunto este que reaparece uma e outra vez de maneira mais ou menos explícita e especialmente neste período no palácio e, dentro deste, aquele que é o da estadia de Sancho na ínsula. Todo um jogo de caixas chinesas onde as coisas e os temas e assuntos se encaixam os uns nos outros. | ||
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+ | Neste caso, Cervantes chega inclusivamente a referir a cumplicidade e aliança entre a nobreza e o campesinos ricos, tema típico de boa parte do teatro da época, ao fazer-nos saber que o duque não intervinha na demanda de Dona Rodrigues devido a que o pai do sedutor da filha ''«le presta dineros y le sale por fiador de sus trampas...»''. | ||
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+ | ''Además'', o que no começo da obra parecia afectar só a Sancho, a saber o contágio da loucura de Dom Quixote, parece ir afectando já agora em maior ou menor medida todos aqueles que de um modo ou outro se relacionam com o nosso cavaleiro. Como já sabemos uns tentando fazer voltar o herói à realidade, outros com a escusa das burlas, e outros ainda, como Dona Rodrigues, quase que directamente: dir-se-ia que a loucura de Dom Quixote atrai e revela outras loucuras e com isto parece como se a realidade de mais em mais coincidisse com a loucura e paradoxalmente só a mistura de ambas permitisse encontrar uma solução positiva aos assuntos, aquilo que hoje chamamos sustentabilidade... | ||
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+ | Chegamos assim à ronda nocturna de Sancho. Com ela, no capítulo 49 Cervantes volta a encontrar-se uma vez mais com o problema de como fazer para dar credibilidade ao facto de ter que atribuir ao iletrado escudeiro uma linguagem que dificilmente lhe seria natural. E outra vez encontra uma solução brilhante e original: ''“Todos los que conocían a Sancho Panza – nos diz Cervantes – se admiraban oyéndole hablar tan elegantemente y no sabían a qué atribuirlo, sino a que los oficios y cargos graves o adoban o entorpecen los entendimientos”''. E uma vez mais, o autor que já tinha passado por encontrar até ''“soluções apócrifas”'' e de atribuição duvidosa, consegue surpreender-nos com o seu leque de invenções, sempre geniais e únicas. O tema da ronda já aparecia em alguma novela picaresca e em alguns entremezes, nestas obras as rondas dão lugar a uma profusão de burlas que sofrem guardas e alguazis de justiça que neles se encontram. Dos três casos que Cervantes expõe na Barataria, só parece fazer referência a esse mundo o cómico dialogo entre o governador e o jovem ''“tecelão de ferros de lanças”'' – expressão esta aliás, que muito provavelmente tenha conotações eróticas sobre tudo porque depois faz referência a um provável futuro encontro nessa saída a “apanhar ar” a qual o moço se dizia destinado. | ||
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+ | Um tom muito diferente têm os outros dois o do jogador ganancioso e o terceiro, o mais desenvolvido deles todos e que não deixa de relembrar até na sua apresentação as histórias e aventuras novelescas. A linda jovem vestida de homem, tão referenciada em toda a literatura da novela de aventuras e dos comediógrafos da época – basta pensar no próprio Cervantes do Persiles e no Shakespeare da maioria das suas comédias – tal vez tente fazer o leitor predispor-se a algum enredo sentimental ao estilo do de Dorotea. Assim,. Inclusivamente, parece entende-lo o próprio Sancho – ''«¿...no os ha sucedido otro desmán alguno, ni celos, como vos al principio de vuestro cuento dijistes, no os sacaron de vuestra casa?»'' – mas não haverá tal e a aventura à qual podia esperar encontrar-se o leitor revela-se uma simples escapadela infantil : Barataria finalmente não é o mundo do revês nem a ilha da Utopia, nem tão pouco um lugar no qual se de nascimento a quaisquer aventura ou enredo literário. | ||
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− | + | Uma última nota, muito pessoal e sem nenhuma base de sustentação: e não será a ronda nocturna de Sancho que em certo modo tenha dado origem ao maravilhoso quadro de Rembrandt pintado por volta de 1640-42? A pesar do sério a que a célebre pintura parece referir, o facto de nele se encontrar só uma jovem – que disse-se poder ser o retrato da primeira mulher do artista morta de tuberculose nesse mesmo ano de 42 – entre todos os homens finalmente bem poderia ser uma ligeira pista. E nós conhecemos muito bem e já temos falado muito das maravilhosas edições tempranas do Quixote em flandres... | |
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+ | [[DQ26|08 JAN]], [[DQ27|22 JAN]], [[DQ28|05 FEV]], [[DQ29|19 FEV]], [[DQ30|5 MAR]], [[DQ31|19 MAR]], [[DQ32|2 ABR]], [[DQ33|16 ABR]], [[DQ34|30 ABR]], [[DQ35|14 MAI]], [[DQ36|28 MAI]], [[DQ37|18 JUN]], [[DQ38| 2 JUL]], [[DQ39| 9 JUL]], [[DQ40| 30 SET]], [[DQ41| 14 OUT]], [[DQ42| 28 OUT]], [[DQ43|18 NOV]], [[DQ44| 2 DEZ]], [[DQ45| 16 DEZ]] | ||
− | + | 2014 | |
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+ | [[DQ46| 13 JAN]], [[DQ47| 27 JAN]], [[DQ48| 10 FEV]], [[DQ49|24 FEV]], [[DQ50|10 MAR]], [[DQ51|24 MAR]], [[DQ52|14 ABR]], [[DQ53|28 ABR]], [[DQ54|12 MAI]], [[DQ55|26 MAI]], [[DQ56|9 JUN]], [[DQ57|23 JUN]], [[DQ58|7 JUL]], [[DQ 59|21 JUL]] | ||
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+ | <center>[[Ler Dom Quixote]]</center> | ||
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Edição actual desde as 12h03min de 22 de Junho de 2014
Um projecto do São Luiz Teatro Municipal
comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque
Sessão 49 – Segunda, 24 de Fevereiro de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 48 e 49 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."
Yo he dado en Don Quijote pasatiempo
al pecho melancólico y mohíno
en cualquiera sazón, en todo tiempo…
Cervantes
Viaje del Parnaso.
No original, Cervantes começa o capítulo 48 da segunda parte do Quixote assinalando mais uma vez que a passagem entre dois episódios não coincide necessariamente com a divisão dos capítulos. Neste caso, "además", Cervantes, que começa justamente por este mesmo adverbio, faz alusão directa ao comentário que ele mesmo tinha feito nos versos 22 a 24 do quarto capítulo do seu Viaje del Parnaso. Se faltasse ainda alguma prova do monumental puzzle de materiais e (auto)referencias com o qual o autor compôs este livro ímpar, fique aqui mais uma pequena amostra.
O recurso a digressão, además, mostra também a autonomia que Sancho tem ganhado nesta segunda parte da obra, até chegar a plena independência nestes capítulos referentes a ínsula Barataria. Sem ele, o seu lugar será neste capítulo ocupado pela Dona Rodrigues, e o capítulo todo será composto como se de um passo de entremez se tratasse. E não faltara nele nenhum dos ingredientes com os quais estes eram construídos, nem a lembrança clássica aos amores, nem a critica as donas, nem as figuras estranhas e tipificadas, e nem sequer o final às escuras e o enxerto de porrada.
Además, ainda há mais: sobre esta teia, Cervantes, pinta ainda certos elementos essenciais e característicos de toda a obra. Assim, o cavaleiro que espera ver-se confrontado com Altisidora para se encontrar frente a uma Dona que por sua vez confunde com uma aparição diabólica reflecte perfeitamente o contraste entre a imaginação e a realidade, e bem que possa parecer atenuado, não difere em muito com quem confunde rebanhos com exércitos ou molinhos com gigantes.
Cervantes não se priva, nem nos priva a nós, de incluir dentro desta história outras histórias e situações que ficam nela encaixadas, como é o caso de, dentro da história da Dona e a da filha que ela vai-nos contar, incluir a do marido, ou a do aguazil, dando com isto, además, um ar de acontecimento real àquilo que é referido. Também não deixa de tocar no tema das relações entre classes sociais, assunto este que reaparece uma e outra vez de maneira mais ou menos explícita e especialmente neste período no palácio e, dentro deste, aquele que é o da estadia de Sancho na ínsula. Todo um jogo de caixas chinesas onde as coisas e os temas e assuntos se encaixam os uns nos outros.
Neste caso, Cervantes chega inclusivamente a referir a cumplicidade e aliança entre a nobreza e o campesinos ricos, tema típico de boa parte do teatro da época, ao fazer-nos saber que o duque não intervinha na demanda de Dona Rodrigues devido a que o pai do sedutor da filha «le presta dineros y le sale por fiador de sus trampas...».
Además, o que no começo da obra parecia afectar só a Sancho, a saber o contágio da loucura de Dom Quixote, parece ir afectando já agora em maior ou menor medida todos aqueles que de um modo ou outro se relacionam com o nosso cavaleiro. Como já sabemos uns tentando fazer voltar o herói à realidade, outros com a escusa das burlas, e outros ainda, como Dona Rodrigues, quase que directamente: dir-se-ia que a loucura de Dom Quixote atrai e revela outras loucuras e com isto parece como se a realidade de mais em mais coincidisse com a loucura e paradoxalmente só a mistura de ambas permitisse encontrar uma solução positiva aos assuntos, aquilo que hoje chamamos sustentabilidade...
Chegamos assim à ronda nocturna de Sancho. Com ela, no capítulo 49 Cervantes volta a encontrar-se uma vez mais com o problema de como fazer para dar credibilidade ao facto de ter que atribuir ao iletrado escudeiro uma linguagem que dificilmente lhe seria natural. E outra vez encontra uma solução brilhante e original: “Todos los que conocían a Sancho Panza – nos diz Cervantes – se admiraban oyéndole hablar tan elegantemente y no sabían a qué atribuirlo, sino a que los oficios y cargos graves o adoban o entorpecen los entendimientos”. E uma vez mais, o autor que já tinha passado por encontrar até “soluções apócrifas” e de atribuição duvidosa, consegue surpreender-nos com o seu leque de invenções, sempre geniais e únicas. O tema da ronda já aparecia em alguma novela picaresca e em alguns entremezes, nestas obras as rondas dão lugar a uma profusão de burlas que sofrem guardas e alguazis de justiça que neles se encontram. Dos três casos que Cervantes expõe na Barataria, só parece fazer referência a esse mundo o cómico dialogo entre o governador e o jovem “tecelão de ferros de lanças” – expressão esta aliás, que muito provavelmente tenha conotações eróticas sobre tudo porque depois faz referência a um provável futuro encontro nessa saída a “apanhar ar” a qual o moço se dizia destinado.
Um tom muito diferente têm os outros dois o do jogador ganancioso e o terceiro, o mais desenvolvido deles todos e que não deixa de relembrar até na sua apresentação as histórias e aventuras novelescas. A linda jovem vestida de homem, tão referenciada em toda a literatura da novela de aventuras e dos comediógrafos da época – basta pensar no próprio Cervantes do Persiles e no Shakespeare da maioria das suas comédias – tal vez tente fazer o leitor predispor-se a algum enredo sentimental ao estilo do de Dorotea. Assim,. Inclusivamente, parece entende-lo o próprio Sancho – «¿...no os ha sucedido otro desmán alguno, ni celos, como vos al principio de vuestro cuento dijistes, no os sacaron de vuestra casa?» – mas não haverá tal e a aventura à qual podia esperar encontrar-se o leitor revela-se uma simples escapadela infantil : Barataria finalmente não é o mundo do revês nem a ilha da Utopia, nem tão pouco um lugar no qual se de nascimento a quaisquer aventura ou enredo literário.
Uma última nota, muito pessoal e sem nenhuma base de sustentação: e não será a ronda nocturna de Sancho que em certo modo tenha dado origem ao maravilhoso quadro de Rembrandt pintado por volta de 1640-42? A pesar do sério a que a célebre pintura parece referir, o facto de nele se encontrar só uma jovem – que disse-se poder ser o retrato da primeira mulher do artista morta de tuberculose nesse mesmo ano de 42 – entre todos os homens finalmente bem poderia ser uma ligeira pista. E nós conhecemos muito bem e já temos falado muito das maravilhosas edições tempranas do Quixote em flandres...
AGZ
23 de Fevereiro de 2013
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